segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Culto

Perguntou-se porquê. Não conseguiu encontrar resposta. Às vezes a vida traz dádivas que não parecem reais e é difícil aceitá-las. Tentou culpar a sorte, mas não foi capaz de banalizar a questão dessa maneira... E mesmo não chegando a uma conclusão, não conseguiu deixar de ambicionar.
Pensou no passado. Tentou rever todos os dias, minutos, segundos... Procurou uma pista, um motivo, uma razão para a irracionalidade daquilo que estava a viver ganhar sentido. Esse vazio tão cheio de nada manteve-se... E agora fica o impasse, a pairar. Esse lugar tão calmo que é apenas viver um dia de cada vez.
Ela não sabe. Não sabe como aceitar a benção que lhe foi colocada ali, diante de si, com um olhar tão profundo fixado no seu, que por mais que o tente ler nunca descobre o que lhe esperar.
Ela sente-se nua, despida de confiança. Imagina a sua expressão, cheia de medo e embaraço, voltando a ser uma criança desprotegida que procura apenas um par de braços que lhe diga que está tudo bem, que encontrou um porto seguro. E por detrás de um olhar envergonhado, o seu pensamento deseja ardentemente que lhe afague o cabelo, num toque que saberia meigo e cheio de ternura. Nunca lho confessará.
Pergunta-se porquê. Tenta culpar a sorte. Procura pistas que o expliquem... Desiste. Deixa de querer saber e vive. Vive. Sente muito. Promete-se a si mesma: de cada vez que o vir dormir, absorver-lhe-á todos os traços, sentir-lhe-á a suavidade da pele e sorrir-lhe-á. Saberá que aquele momento é real. Em silêncio falar-lhe-á para as pestanas, tão suas, agradecendo-lhe todas as perguntas sem resposta que encontra a cada dia.
Afinal de contas... não é isto o amor?
Ela acredita que sim.

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

pedestal

Lá no alto, no teu pedestal, te mantens. Sorris e acenas, nada te destrói. Quem me dera a mim poder viver com essa leveza que carregas.
Na maior parte das vezes queria apenas compreender essa indiferença tão natural que te desperta para todas as realidades, afastando-te do mundo em larga escala. É a despreocupação que nos separa... e separa mesmo.
A angústia preenche-me todos os pedaços soltos da garganta apertada, cujo nó lá fica, cada vez mais amarrado. Sei que te prometi procurar a indiferença, mas acho verdadeiramente que não sou capaz. Tenho demasiadas cicatrizes rasgadas que nem com a melhor massa de polir ficam menos vincadas. Talvez seja esse o problema.
A demasia de coisas que já vi do mundo, os baques que já levei da vida, a incapacidade de não valorizar tudo. Porque o nada que queres que tenha são sempre muitos tudos que se enchem de dúvidas, certezas, convicções e receios.
O teu pedestal continua firme, mesmo com este vento todo que despenteia qualquer cabeça. Imagino-te a falar para o público, com aquele riso despreocupado e costumeiro, tão teu que me dói. Sabes que não estou por perto, mas na verdade estou sempre... é que o meu coração tem controlo remoto e adivinha sempre como estarás, por muito que não o queiras. Eu vejo-te em todos os minutos, ainda que não o queiras.
Vive. Sê-te como és. É isso que te faz a diferença em mim.
Mas não me peças p'ra não te dizer a verdade... é que se há certeza em algum pensamento, é naquele firme que grita que não te mereço.

sábado, 12 de setembro de 2015

labirinto

Exisitirmo-nos num só nunca é fácil. Ainda que possamos ser um, esse caminho está escondido no meio do labirinto em que as paredes se fecham à medida que passamos, impedindo-nos de voltar para trás e escolher outra opção.
Vamos, sem receios. A tua mão puxa a minha e guias o caminho que nos leva ao destino que apenas conheceremos quando lá chegarmos. Gosto dessa tua firmeza, da certeza com que agarras nos meus dedos e segues em frente, impassível, determinado. Sigo-te, segura, ainda que tente muitas vezes espreitar para descobrir o que está em diante de ti. É mais forte que eu...
Vejo lá o perigo, algumas vezes. A ameaça dos cruzamentos que surgem e te obrigam a escolher para onde virar: direita ou esquerda? Sei que escolherás, num piscar de olhos. Que a tua decisão é fácil e imediata, porque sabes quem és e para onde queres ir. Mas eu estou aqui, intrinsecamente ligada à tua mão, e tu sabes que não podemos voltar para trás. Que não podes simplesmente largar-me e seguir sozinho. Não nos sabemos ser mais sozinhos.
Então tenho de te chamar dessa tua batalha com o labirinto. Tenho de colocar toda a minha força e puxar-te o braço, fazer-te estacar e olhar para mim. Falar-te. Lembrar-te que ainda aqui estou e que é preciso ponderar tudo. É preciso olhar para as escolhas, a direita e a esquerda, com transparência, frontalidade e razão.
Estacámos. Colocamo-nos lado a lado. E é aí que te quero perguntar se podemos decidir em conjunto. É nesse momento em que sei que, ainda que existirmo-nos num só não seja fácil, estamos a tentar e estamos a querer encontrar o centro do labirinto juntos. Eu gosto de seguir-te, gosto do teu instinto e da tua força. Da segurança da tua convicção. Mas a opção não é só uma e temos de nos lembrar disso.
Já te disse: é mais forte que eu espreitar para diante de ti. Se assim não fosse, como poderia eu encontrar a força para te parar e fazer pensar nas opções que poderão vir de cada uma das estradas? Terra batida ou alcatrão? Relva ou lama?
Sei que decidirás, por ti. Por nós. Sei que te seguirei sem hesitar, para onde quer que vás. Afinal de contas, este é o nosso labirinto. Admiro a tua força para continuar. Mas... será que tu também não admiras a minha?

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Tempestade

É assim. Sem aviso, sem necessidade, sem premonição. Basta uma palavra, um suspiro, um silêncio. Basta qualquer coisa indefinida mas suficientemente perspicaz. É só isso. O mundo abala-se de novo, como de todas as outras vezes, e tu só tens de arranjar forma de te abrigar da tempestade e esperar que passe. Não vale a pena de outra maneira.
Mas insistes, lutas e tentas derrubar essas forças da natureza de todas as vezes em que vem uma tempestade. Colocas tudo de ti na esperança vã de que as nuvens cinzentas sigam outro rumo e te deixem descansar por um pouco. Nunca resulta.
As tempestades são assim. Chegam, rebentam em todas as direcções e não há nada a fazer se não suportá-la o melhor possível. Encontras o abrigo da noite e no silêncio do isolamento dos outros, fechas os olhos e adormeces até que a chuva se dissipe e os raios de sol espreitem, timidamente.
Não sabes o porquê destas tempestades que aparecem de tempos a tempos, só sabes que elas virão e assombrarão para sempre a confiança da sombra que podes ser daqui para a frente.
E daqui para a frente ninguém sabe como é... Só podes saber que a tempestade voltará e que não há nada que te salve dela se não a crença de que um dia a chuva te poderá lavar a alma.

terça-feira, 1 de setembro de 2015

camisa nobre

Sei que te cheguei destruída. Em farrapos que tentam voltar a ser vestidos de novo, numa peça de roupa podre completamente desacreditada da sua capacidade de se tornar um novamente. 
Cheguei-te assim, mas cheguei-te. Porque mesmo em farrapos não deixo de ser a camisa mais nobre e esperançosa que alguém deitou ao lixo. Mas o meu pano está muito amarrotado e é-lhe difícil aceitar que poderá ser uma só peça novamente… 
Em todos os momentos tento suaviza-lo, mas preciso que empregues o teu melhor ferro de engomar para que eu consiga fazê-lo. A minha vontade está lá. Eu quero ser uma camisa de novo e quero que me vistas. 
Com o melhor de mim, com o melhor que eu possa ter e ser, depois de farrapos sujos e velhos.